terça-feira, 8 de novembro de 2011

Por que os filósofos não riem


Desde os gregos, a filosofia vê o riso e a gargalhada como atos grosseiros. Um novo livro afirma que os pensadores não deveriam se levar tão a sério

LUÍS ANTÔNIO GIRON

- (Foto: Reprodução)

"Penso, logo rio.” Tal afirmação jamais saiu da boca de um filósofo. O filólogo e pensador alemão Manfred Geier vasculhou a história da filosofia atrás da resposta para uma questão simples: por que os filósofos são tão sérios e riem tão pouco? “Ainda hoje, soltar uma gargalhada em debates filosóficos é visto como um ato grosseiro”, disse Geier a ÉPOCA. “Não deveria ser assim.” O resultado de suas investigações é o ensaio Do que riem as pessoas inteligentes? (Editora Record, 302 páginas, R$ 42,90). “Quis fazer uma excursão pela história da filosofia”, diz Geier. “Durante a jornada, perguntei: o que os filósofos pensaram sobre a graça, o humor e o riso, e em que situações eles próprios riram de determinados temas?”

Geier responde a essas perguntas com sua “pequena filosofia do riso”. Para isso, usa o método de um de seus escritores favoritos, Michel de Montaigne, que costumava dizer: “Não ensino uma teoria, mas conto histórias”. Em sua viagem, Geier pretende provar que existem pessoas inteligentes que amam o saber e não aceitam que uma boa gargalhada seja excluída das altas discussões. Geier diz que o riso foi expulso da filosofia desde o início da prática acadêmica, na Antiguidade. De acordo com ele, o grego Platão (427-347 a.C.) foi o maior responsável por banir o riso do debate filosófico. Segundo o historiador Diógenes Laércio, Platão era “tão casto e sério que ninguém jamais o vira rir muito”. Por volta de 385 a.C., ao fundar sua escola, a Academia – nome inspirado no bosque Academia, em Atenas, em homenagem ao herói Academo –, Platão desejava formar sábios virtuosos e graves. Ele menciona o riso em seus Diálogos, mas apenas para rejeitá-lo. Na República, defende o governo dos filósofos e denuncia “o malefício do prazer do riso”, indigno do homem livre. Condena a risada frouxa dos deuses, cantada por Homero e Hesíodo. Tal filosofia se baseia nos ensinamentos do mestre de Platão, Sócrates (469-399 a.C.), também ele, diz Platão, defensor da seriedade. (Embora Xenofonte, outro discípulo de Sócrates, tenha descrito o mestre como um bonachão frequentador de banquetes.)

- (Foto: Reprodução)

O maior antagonista da Academia platônica foi Demócrito (c. 470-370 a.C.), conhecido como “o filósofo que ri”. Platão odiava-o a ponto de dizer que, se pudesse, recolheria todos os seus livros para queimá-los. Restaram apenas 300 fragmentos de Demócrito. Ele opunha o idealismo platônico a uma teoria materialista, o atomismo, cuja primeira lei é: “A origem de tudo são os átomos e o vazio; todo o resto não passa de opinião oscilante”. Demócrito afirma que, dado o vazio, o objetivo da vida está em preencher a alma com alegria. O caminho para sua realização é rir de tudo, de todos e de si próprio. Demócrito não fez escola, embora Aristóteles (384-322 a.C.) tenha partido de suas ideias para descrever o funcionamento físico do riso e sua relação com a comédia. Para Aristóteles, o riso é apaziguador, pois funciona como uma válvula de escape para as paixões.

Diógenes (c. 410-323 a.C) foi o último dos pensadores gregos a fazer a apologia do riso. Para ele, o riso é sarcástico e destruidor. Era chamado de cínico porque vivia com um cão (kynos, em grego, de onde vem “cinismo”) numa barrica, desprezando os bens materiais. Para o filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk, a arma de Diógenes “não é tanto a análise, e mais a risada”. O prazer de viver, dizia Diógenes, é obtido pelo conhecimento das coisas necessárias, não pela posse. Uma anedota da Antiguidade conta que ele se encontrou com Alexandre, o Grande. O imperador se aproximou do filósofo, deitado ao ar livre, e, jogando sombra sobre ele, disse: “Pede-me o que quiseres”. Ao que Diógenes respondeu: “Devolve meu sol”.

Para encontrar eco das ideias de Demócrito em tempos recentes, diz Geier, é necessário visitar as “correntes subterrâneas da história da filosofia”. Somente no século XVIII, o riso passou por uma reabilitação, embora parcial. E as zombarias de Diógenes só foram redimidas por autores iluministas, como Christoph Martin Wieland (1733-1813) e Immanuel Kant (1724-1804). Wieland adotou Diógenes como modelo, “forasteiro desgrenhado”, ansioso por liberdade e dono de um humor iconoclasta. Na Crítica do juízo (1790), Kant retomou a fisiologia do riso, esboçada por Demócrito e Aristóteles. “A energia vital promovida no corpo, a paixão que movimenta as vísceras e o diafragma, dando a sensação de saúde (...) constituem o prazer que se tem em poder tocar o corpo através da alma e usar esta como médico do corpo”, disse Kant.

O que os filósofos pensam hoje sobre o riso vem dessa tradição. Geier divide as visões atuais em três vertentes. A primeira, tradicional, afirma que o riso é a expressão dos sentimentos de superioridade de quem ri sobre as outras pessoas. Poderia ser chamada de esnobismo. Há a vertente da “teoria da incongruência”, a mais popular. Ela diz que o mundo está tão cheio de contradições e absurdos que há sempre um motivo para dar risadas. Por fim, há a teoria do alívio, formulada por Herbert Spencer, fundador da psicanálise. Ele chamou a atenção para o poder terapêutico da risada. O próprio pai da medicina, Hipócrates, dizia que rir faz bem à saúde, embora não achasse muito saudável o riso exagerado de Demócrito. “O riso é a válvula de escape dos excessos de energia nervosa”, diz Geier. “Ele alivia a tensão nervosa.”

O que afinal significa o riso e para que ele serve em nossa vida? É um ato de reflexão ou esnobismo estúpido? Tem mesmo poder de curar? As três correntes de pensamento ensinam sobre o ato de pensar e sobre a vida diária. “Quando você lê sobre o que fez os filósofos rir, aprende sobre as contradições e as ambiguidades da vida”, afirma Geier. “Essas mudanças de estado psicológico provocam risadas e bem-estar, aos acadêmicos e às pessoas comuns.” Quem ri, inevitavelmente, filosofa.

A internet faz mal ao cérebro?

Um grupo cada vez maior de pesquisadores acha que estamos nos tornando mais distraídos – e mais burros – por causa do uso excessivo dos aparelhos digitais

ALBERTO CAIRO, PETER MOON E LETÍCIA SORG

PREÇO ALTO O biólogo Hebert Campos, em Campina Grande. A internet abriu seus horizontes e acabou com sua concentração. “Perco de um lado, mas ganho do outro”  (Foto: Kleide Teixeira/ÉPOCA)

O escritor americano Nicholas Carr sentiu que algo estranho ocorria com ele há uns cinco anos. Leitor insaciável, percebeu que já não era capaz de se concentrar na leitura como antes. Na verdade, sua ansiedade disparava diante de qualquer tarefa que exigisse concentração – seus olhos procuravam a tela do computador ou do celular. O impulso de espiar na internet era quase incontrolável, diz ele. “Sentia que estava forçando meu cérebro a voltar para o texto”, afirma. “A leitura profunda, antes tão natural para mim, tinha se transformado numa luta.” Tal afirmação abre o livro The shallows – What the internet is doing to our brains (Os superficiais – O que a internet está fazendo com nossos cérebros, ainda sem tradução no Brasil). Nele, Carr faz uma acusação seriíssima: a exposição constante às mídias digitais está mudando, para pior, a forma como pensamos. Ele e um punhado de autores respeitáveis acreditam que, por causa do uso excessivo de computadores e de outros aparelhos digitais, nosso cérebro é alterado e estamos nos tornando menos inteligentes, mais superficiais e imensamente distraídos – o inverso de tudo aquilo que fez de nós a espécie mais bem-sucedida do planeta Terra.

“Em vez de mentes juvenis inquietas e repletas de conhecimento, o que vemos nas escolas é uma cultura anti-intelectual e consumista, mergulhada em infantilidades e alheia à realidade adulta”, afirma Mark Bauerlein, autor de The dumbest generation (A geração mais estúpida). No livro, ele antecipa uma nova Idade das Trevas, quando os indivíduos que hoje são crianças e adolescentes chegarem à maturidade.

Bauerlein, professor na Universidade Emory, na Geórgia, supervisiona estudos sobre a vida cultural americana. Ele acredita que as novas gerações, educadas sob a influência das mídias digitais, são formadas por narcisistas despreparados para pensar em profundidade sobre qualquer assunto. Ele diz que uma pesquisa de 2006 com mais de 81 mil estudantes americanos de ensino médio detectou que 90% deles “leem ou estudam” menos de cinco horas por semana – embora passem “pelo menos” seis horas navegando na internet e um período equivalente assistindo à TV ou jogando videogame. “Indivíduos que não sabem praticamente nada de história, que nunca leram um livro nem visitaram um museu não têm mais do que se envergonhar. Tornaram-se comuns”, afirma.

Carr e Bauerlein não estão sozinhos. A jornalista Maggie Jackson, outra autora crítica da tecnologia, sugere que os mais jovens estão acostumados, por culpa da internet e do uso de celulares, à leitura desatenta de textos cada dia mais breves e estilisticamente mais pobres. Os 140 caracteres que se podem escrever no Twitter, ela acredita, geram pensamentos máximos de 140 caracteres. Parece exagero, mas alguns estudos mostram que há motivos para preocupação. Uma consultoria chamada Genera divulgou um estudo alarmante sobre os efeitos do uso da internet entre os jovens. A empresa entrevistou 6 mil pessoas da geração que cresceu usando a internet e concluiu que as coisas estão mudando radicalmente. “A imersão digital afetou até mesmo a forma como eles absorvem informação”, afirmam os pesquisadores. “Eles não leem uma página necessariamente da esquerda para a direita e de cima para baixo. Pulam de uma palavra para outra, atrás de informação pertinente.” Um efeito disso já foi notado por um professor da Universidade Duke. Ele reclamou com o autor de The shallows que não consegue mais que seus alunos leiam um único livro do começo ao fim, mesmo nos cursos de literatura.

GERAÇÃO VELOZ Jovens chineses jogam on-line e navegam na internet num cibercafé na província de Hubei.  O cérebro parece se adaptar ao ritmo do computador (Foto: Imaginechina/Corbis)

Se as críticas ao uso dos computadodores partissem apenas de intelectuais preocupados com a ruptura de padrões tradicionais, não haveria problemas. Professores se queixando da preguiça de seus alunos era comum nos séculos XX e XIX e, certamente, antes disso. Esse tipo de evidência circunstancial pode ser facilmente contestado por exemplos contrários, que existem abundantemente, mostrando que há milhões de jovens concentrados que leem e estudam com afinco. Mas os críticos vão além das velhas reclamações. Experimentos como o do professor de comunicação Clifford Nass, da Universidade Stanford, são mais difíceis de rechaçar. Eles sugerem que pessoas acostumadas ao funcionamento multitarefa do computador – que permite fazer várias coisas ao mesmo tempo – tendem a imitar a máquina, tocando várias atividades ao mesmo tempo. Escrevem, falam ao telefone, consultam a internet, ouvem música. Tudo simultaneamente, ou quase. As consequências são perversas. Elas erram, ficam irritadas por quase nada e qualquer estímulo as distrai. O estudo mostra que, quanto mais a pessoa se julga eficiente fazendo várias coisas ao mesmo tempo, pior ela as faz. E, quando é necessário que se concentrem numa única atividade por longo tempo, elas precisam de muito mais esforço.

A Associação Americana de Psicologia define multitarefa como “a tendência a fazer mais de um trabalho que precise de atenção ao mesmo tempo, como falar ao telefone e escrever uma mensagem eletrônica”. Ela diz que esse hábito promovido pelas novas tecnologias tornou-se um problema. Sério. O motivo é simples: nossa capacidade de atenção é limitada. Quanto mais ela é fracionada, menos funciona. É um problema que tem origem na evolução da espécie. Fazemos bem uma coisa de cada vez e, mesmo assim, com grau limitado de concentração. Apesar disso, estamos nos dividindo cada vez mais. Entre 2008 e 2009, um estudo da Basex, uma companhia americana especializada em consultoria para grandes empresas, concluiu que um trabalhador médio passa mais de um quarto de sua jornada diária lidando com distrações do mundo real (ligações de telefone, conversas com colegas) e virtuais (e-mails, chats). Outro estudo, de RescueTime, revelou que, em média, um funcionário que usa o computador o tempo todo acessa 50 vezes por dia a caixa de e-mails, 77 vezes programas de comunicação instantânea (MSN ou Google Talk) e 40 vezes as páginas da internet. O custo em atenção e produtividade é imenso. Os pesquisadores dizem que, cada vez que interrompemos uma tarefa, ao voltar a ela podemos demorar mais de dez vezes o tempo da interrupção para retomar a atenção inicial.

- (Foto: Reprodução)


O gaúcho Gérson Worobiej, de 42 anos, analista de custos em Porto Alegre, sabe o que isso significa. Ele diz que a desorganização de sua mesa migrou do papel para a tela. Gastava longos minutos para achar um arquivo perdido na caixa de e-mails – e, enquanto o computador buscava, aproveitava para ler coisas na internet. Quando se dava conta, os minutos já tinham virado hora, e ele estava atrasado. Para tentar dar conta das tarefas, abria um grande número de janelas. Geralmente, tinha a sua frente a tela do e-mail, três planilhas diferentes e ainda o navegador, para os momentos em que queria espairecer. Quanto mais fazia, menos produtivo ficava. O antídoto para o problema de Gérson começou a vir do próprio computador. Ele usou a internet para pesquisar programas que pudessem ajudá-lo a se organizar. E encontrou. Hoje, a primeira coisa que faz no dia é planejar tudo, dentro do programa de gerenciamento de tempo. Fica menos ligado no e-mail porque desligou o alerta automático de mensagens e passou a controlar seus acessos à internet. Também reduziu o número de janelas e tenta fazer uma coisa de cada vez. “Hoje, sou mais produtivo e trabalho menos”, afirma.

Existe o temor, entre os pesquisadores, de que a insistência em comportamentos digitais obsessivos possa causar danos ou alterações neurológicos. Num estudo publicado pela revista eletrônica PlusONE, em junho deste ano, cientistas chineses analisaram a atividade cerebral de 18 adolescentes que passavam mais de dez horas por dia jogando na internet. Eles descobriram que regiões cerebrais encarregadas do autocontrole e da capacidade de concentração numa única tarefa e de evitar distrações apresentavam um tamanho menor que a média. Os jovens mostravam também desempenho pior de memória. O professor Karl Friston, do University College London, diz, porém, que os resultados da pesquisa chinesa não são conclusivos, por dois motivos. Primeiro, porque os jovens estudados são viciados que fogem ao padrão de uso geral da tecnologia. Segundo, porque a pequena quantidade de participantes não permite extrapolar os resultados para a população em geral. Outras pesquisas, porém, estão detectando que quem usa demais a tecnologia sofre limitações em relação aos demais.

Depois de colocar 100 estudantes para realizar um monte de testes, Nass, de Stanford, concluiu que os usuários mais intensos de tecnologia pagam um preço elevado por seus hábitos. “Eles são atraídos por irrelevâncias”, diz o pesquisador. “Qualquer coisa os distrai.” Nos testes de atenção, em que se mede a capacidade de separar e filtrar informação, os tipos multitarefa se deram muito pior do que quem usa tecnologia com moderação. No teste seguinte, de memória, eles também tiveram desempenho relativamente pobre. Quanto mais elementos para memorizar, mais eles se afundavam. Surpresos, os cientistas desenvolveram um terceiro teste, para descobrir se os nerds eram bons pelo menos em saltar rapidamente de uma atividade para outra. Nem nisso eles se mostraram melhores. “Eles não conseguiam se desligar da tarefa que estavam executando pouco antes”, afirma o professor Eyal Ophir, que conduziu os experimentos. “Os multitarefas não conseguem manter as coisas separadas no interior da mente.”

No cérebro dos jovens viciados em jogos, a área responsável pela concentração é menor que a média
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A explicação para isso, segundo os críticos da tecnologia, está no conceito de neuroplasticidade – uma palavra difícil que significa, essencialmente, a capacidade dos neurônios de criar novas conexões ou de reforçar as já existentes, em resposta às experiências do dia a dia. Alguns cientistas temem que, por meio da neuroplasticidade, a arquitetura do cérebro dos usuários de tecnologia seja irremediavelmente alterada. A verdade parece ser menos alarmante. Um exemplo é o resultado de um estudo que comparou o comportamento de três pessoas não acostumadas a usar a internet (chamadas “imigrantes digitais”) com o de três indivíduos que tinham crescido entre computadores (os “nativos digitais”). Os pesquisadores pediram aos dois grupos que fizessem uma busca no Google e navegassem pelos resultados enquanto a atividade de seus cérebros era monitorada. O resultado mostrou que os nativos digitais completavam com mais rapidez a tarefa encomendada pelo pesquisador. Ficou claro também que uma área do cérebro relacionada ao planejamento de atividades conscientes se ativava com maior intensidade no cérebro dos nativos digitais. Até aí, nada demais. A novidade é que, depois de cinco dias, o cérebro dos imigrantes começou a se comportar de forma parecida com o dos nativos digitais. A neuroplasticidade tinha entrado em ação.

Apresentado pelos críticos da tecnologia como surpreendente – e até mesmo assustador –, o resultado desse experimento é, na verdade, trivial. Quem aprendeu a dirigir sabe como é. Nos primeiros dias ao volante, tudo parece novo e difícil. Depois, o ato torna-se mecânico. Os cálculos de tempo e distância que pareciam antinaturais são internalizados. O cérebro cria novas conexões entre os neurônios e muda em função do aprendizado. As pessoas dizem que aprenderam, não que seu cérebro foi alterado. Mas a verdade é que o cérebro mudou. Que ele seja modificado pela tecnologia não constitui, portanto, motivo de alarme. Ele se modifica o tempo todo, em resposta a quase tudo.

Há outros motivos para não se preocupar em demasia com as transformações do cérebro. Em primeiro lugar, porque elas parecem ser reversíveis. Do mesmo jeito que os neurônios criam conexões novas o tempo todo, essas conexões podem também se enfraquecer pela falta de uso. Alguém que mude os hábitos de uso de tecnologia pode voltar a ter um cérebro “normal” – como explica o neurocientista português António Damásio, um dos maiores especialistas mundiais no assunto. “Para conseguir processar, analisar e responder à grande quantidade de informações do mundo virtual, o cérebro precisa se adaptar a seu tempo acelerado”, afirma Damásio (leia seu artigo exclusivo na página 80). Ele dá conta do recado por ser plástico e adaptável às novas condições, ainda que cobre um preço na redução da capacidade de concentração. “Mas a dificuldade de concentração não é irreversível. Acreditar nisso é bobagem. Qualquer criança e adolescente com um nível de inteligência normal é capaz de aprender a se concentrar e desenvolver os mesmos padrões de atenção e reflexão das gerações de seus pais e avós”, diz Damásio.

Embora esteja claro que a neuroplasticidade é uma via de mão dupla – ela modifica o cérebro, mas permite que ele seja modificado de volta –, ainda há confusão sobre o que realmente é possível alterar no cérebro humano pelo uso da tecnologia. O psicólogo Steven Pinker, autor de livros fundamentais sobre o funcionamento da mente humana, insiste que o cérebro não é uma massa de argila inteiramente moldável. “A experiência não redesenha nossas capacidades básicas de processamento de informação”, diz Pinker. As pessoas podem se educar para ler mais rápido na internet, mas os resultados serão limitados pela estrutura do cérebro e dos neurônios. Chega um ponto em que as mudanças cessam, por mais impulsos que venham do mundo exterior – da tecnologia ou de qualquer outra área.

MENOS É MAIS O analista de custos Gérson Worobiej, de Porto Alegre, no computador do trabalho. Ele fazia tudo ao mesmo tempo com baixa produtividade (Foto: Ricardo Jaeger/ÉPOCA)

A professora Andréa Jotta, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Psicologia em Informática da PUC de São Paulo, duvida até mesmo que haja mudanças reais na cognição humana por causa dos computadores. “As pessoas não perderam a capacidade de se concentrar. O que vemos aqui é um excesso de foco no mundo digital”, diz ela. Há quem entre tão fundo no mundo virtual que se esquece do real a sua volta. Em um dos casos estudados por ela, o paciente via pornografia na baia de trabalho, alheio ao fato de estar em um lugar público. Em outros, as pessoas deixavam de dormir ou ir ao banheiro para não largar um jogo. “A concentração parece estar ali, mas o foco está voltado para outras coisas”, afirma.

Ainda que a internet cobre um preço de seus usuários, como afirma o neurocientista Damásio, as críticas a seu uso ignoram um efeito positivo de sua disseminação: a conexão intelectual de milhões de pessoas que, de outra forma, não seria possível. Ela tem potencial de mexer com a inteligência do planeta inteiro. As redes sociais às quais nos integramos – reais ou virtuais – exercem uma influência considerável sobre nosso desenvolvimento individual. Como sabem os pedagogos, um ambiente estimulante aumenta a possibilidade de que a inteligência se desenvolva. Muitas das grandes ideias não nasceram de mentes privilegiadas trabalhando em laboratórios silenciosos. Nas palavras de Steven Johnson, autor de De onde vêm as boas ideias, elas “emergem de espaços de conexões, da colisão entre diferentes visões, sensibilidades e especializações”. Não é por acidente que a maior parte da inovação científica e tecnológica do último milênio tenha sido produzida em centros urbanos abarrotados e cheios de distrações. Em outras palavras, a inteligência parece ser contagiosa. No século XXI, a internet pode ser o vetor de contágio.

Os neurologistas dizem que a perda de concentração causada pela internet não é irreversível "

Há até um grupo que defende uma ideia à primeira vista delirante: a conexão de bilhões de pessoas à internet permitirá a emergência, no futuro, de uma espécie de inteligência em rede, capaz de transcender o potencial de cada um de seus nós. O jornalista e escritor Kevin Kelly, um dos fundadores da futurista revista Wired, acredita que a tecnologia segue as regras da evolução natural e evolui em simbiose com o ser humano. No futuro, ele enxerga uma fusão total do ser humano com as máquinas, até que uns sejam indistintos dos outros. Kelly chama o aglomerado de tecnologias físicas (ferramentas) e conceituais (ideias) de “Technium”. Não é preciso partilhar essa visão fantasiosa para entender o lado positivo da conexão humana por meio da internet.

O biólogo Hebert Bruno Campos, de Campina Grande, na Paraíba, é um óbvio beneficiário dessas conexões. Aos 28 anos, ele mora com os pais e dois irmãos. A proximidade da Chapada do Araripe, um dos mais ricos sítios de fósseis do país, fez com que Hebert, desde os 7 anos, tivesse certeza do que seria quando crescesse: paleontólogo. Sonhar era fácil. Realizar o sonho, difícil. Ainda mais vivendo tão longe dos grandes centros do Sul e do Sudeste. Mais complicado ainda quando se sabe que Hebert é superdotado e tem grande dificuldade de estabelecer relacionamentos sociais. “Descobri a internet aos 14 anos. Minhas primeiras amizades foram feitas via internet”, diz ele. “Minha adolescência foi vivida na frente do computador.” Agora, Hebert se prepara para ingressar no mestrado em paleontologia. Graças à internet, conseguiu fazer amigos que o visitam em casa. Mas há um preço. Ele admite que a ultraexposição à internet – que o ensinou a fazer várias coisas ao mesmo tempo – também ajudou a torná-lo ansioso e dispersivo. “As ferramentas digitais me tiraram do isolamento e me conectaram com o mundo. Permitiram que eu conhecesse paleontólogos brasileiros e estrangeiros”, diz ele. “Mas, quando preciso estudar ou ler um livro, calculo o tempo que terei de ficar desplugado da internet. Basta ler uma página para que eu perca a concentração e comece a pensar nas mensagens que devo ter recebido e terei de responder.” Hoje, ele tenta estabelecer alguma distância dos meios digitais. Entre a tela do notebook e o teclado do smartphone, ainda passa oito horas por dia plugado. “Estou tentando balancear minhas duas vidas, a real e a on-line. Perco de um lado, mas ganho de outro”, afirma.

- (Foto: Reprodução)

As evidências do benefício da conexão propiciada pela rede estão por toda parte. Os maiores centros de inovação, como o Vale do Silício, na Califórnia, Estados Unidos, surgem da enorme concentração de gente brilhante, bem-educada e hiperconectada. As empresas que quebram padrões são as que conseguem juntar grupos de profissionais notáveis sob um mesmo teto. De alguma forma, as relações que tais indivíduos criam – dentro das empresas ou mesmo no ciberespaço – elevam as capacidades cognitivas de todos eles. A teoria da evolução das espécies, que o filósofo Daniel Dennett chamou de “a maior ideia científica de todos os tempos”, não foi produto apenas dos 20 anos que Charles Darwin passou mergulhado nos estudos práticos e teóricos da natureza. Beneficiou-se também da impressionante troca de cartas que ele mantinha com colegas e amigos de porte intelectual equivalente. Darwin parece ter escrito mais de 15 mil cartas ao longo da vida, discutindo suas ideias e seus sentimentos. Se ele tivesse nascido no século XX, teria sido usuário ativo de e-mail e redes sociais.

Se a exposição constante a telas de televisão, computadores e celulares fosse capaz de emburrecer seus usuários, seria razoável uma queda planetária no quociente intelectual (Q.I.) nos últimos dez, 20 ou 30 anos. Mas aconteceu o contrário. Depois de 60 anos de TV e de mais de duas décadas de uso cotidiano da internet, o Q.I. não para de crescer. Se um adolescente médio de hoje viajasse para o passado e fizesse o teste de Q.I. em 1950, conseguiria um resultado de 120, considerado elevado. Segundo cálculos de Pinker, um cidadão comum de hoje tem Q.I. maior do que 98% das pessoas em 1910. Se um cidadão de 1910 fizesse o teste hoje, seu Q.I. medido pelos padrões atuais seria 70 – tão baixo que estaria próximo do retardamento. É verdade, porém, que o Q.I. mede um tipo específico de inteligência (lógico-racional) e não pode ser usado, sozinho, para avaliar se a humanidade está emburrecendo ou não.

De todo modo, os apocalípticos da catástrofe digital tampouco explicam outro fenômeno que desafia seu pessimismo: por que as sociedades mais interconectadas do mundo são também as que apresentam melhores índices de desempenho na educação? Países como Dinamarca, Finlândia, Austrália e Coreia do Sul estão entre os dez mais conectados do planeta – assim como entre os dez primeiros no ranking de qualidade escolar da ONU. Parece que a banda larga ajuda no desenvolvimento intelectual dos jovens – ou, pelo menos, seus efeitos nocivos podem ser combatidos por bons professores e uma educação sólida.

A desconfiança em relação às inovações é uma constante humana. Sempre recebemos as novas tecnologias com um misto de esperança e receio. Há 2.400 anos, o pensador grego Sócrates temia que a escrita acabasse com a memória das pessoas. Ele previu que a possibilidade de registrar pensamentos por meio de símbolos sobre uma tábua de cera levaria a um enfraquecimento da mente e do raciocínio. O surgimento da imprensa de Gutemberg, na Europa da Idade Moderna, provocou uma reação parecida em alguns elitistas. Eles achavam que a difusão maciça de livros provocaria a banalização da cultura. Aconteceu o oposto. Em retrospecto, pode-se dizer que a difusão de conhecimento é invariavelmente um fenômeno positivo. Com a internet, é evidente que a humanidade ganhou nesse quesito. A dúvida diz respeito àquilo que perdemos. Algo que um dia poderá parecer tão ridículo quanto as palavras de Sócrates sobre a escrita – ou tão essencial quanto o resto de suas ideias.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Internar à força resolve?

FONTE: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI255395-15257,00.html PESQUISADO EM: 10/08/2011

André Valentim
RESIGNADO
Um usuário de crack de 25 anos espera pelo transporte que o levará ao abrigo municipal. Ele aceitou a internação porque temia morrer do vício

A boca ferida, maltratada pelo uso contínuo de cachimbos precários, era uma das poucas partes do rosto de R. que o cobertor marrom e sujo deixava entrever. O corpo miúdo poderia facilmente ser confundido com o de um garoto de 14 anos. Os passos que o conduziam para fora da Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, eram apenas resignados, não mais relutantes. Enquanto caminhava, R. experimentava momentos de lucidez nos quais tentava resumir sua trajetória. Aos 25 anos, viciado em crack, sem ter onde dormir, exceto a rua, ele enfrentava o quarto dia sem comer. No dia 19 de julho, foi encontrado e levado à força pela equipe da Secretaria de Assistência Social do município do Rio de Janeiro. “Se for a salvação para mim, eu vou. Sabe por quê? Porque eu tô vendo que se eu ficar aqui, fumando oito, nove pedras por dia, eu não vou aguentar mais. Eu vou morrer.” Antes das 10 horas da manhã, R. já embarcara numa das quatro vans da prefeitura que levaria os usuários de crack recolhidos ali à delegacia e, depois, a algum abrigo para tratamento de dependentes químicos.

A ação da Secretaria de Assistência Social carioca é estridente. Desde maio, três vezes por semana, os agentes sobem os morros da cidade que continuam sob domínio do crime organizado para levar, na marra, os dependentes de crack que povoam as cracolândias da cidade. ÉPOCA acompanhou uma dessas operações no final do mês passado. O trabalho só é possível porque é apoiado por policiais civis e militares, empunhando armas de grosso calibre. Antes dos agentes, o blindado da PM conhecido como “caveirão” sobe o morro. Há troca de tiros entre a polícia e traficantes. Abordados pelos agentes, os usuários costumam reagir de modo arredio. A resposta vem na mesma proporção. O porte físico avantajado e a experiência como segurança de boate, constantes entre os agentes da secretaria, possibilitam que eles terminem por dominar os dependentes, embora com dificuldades.

As operações já resultaram no acolhimento de 1.319 pessoas (1.065 adultos e 254 crianças e adolescentes) em cracolândias. Segundo a prefeitura do Rio, nas áreas onde os viciados são tirados das ruas, o índice de pequenos roubos e furtos costuma cair até 50% nos primeiros dias. Depois de levados das favelas, crianças, adolescentes e adultos têm destinos diferentes. Todos os menores de 18 anos encontrados, de quem o Estado passa a ser o tutor, ficarão cerca de três meses internados contra a própria vontade (e de sua família, eventualmente) em alguma unidade terapêutica da prefeitura. São casas com psiquiatras, clínicos gerais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e grades. Grades por todos os lados. A prefeitura do Rio está convencida de que, sem elas, de nada adianta ter os melhores profissionais. A recuperação seria inviável. Ainda assim, nem sempre se consegue evitar a fuga dos pacientes. Para os adultos, a internação compulsória ainda não é a regra, embora já ocorra em alguns casos, sempre autorizados por um juiz. A prefeitura do Rio afirma que gostaria de adotá-la em larga escala, mas que ainda não encontrou um meio legal de promovê-la.

André Valentim
À FORÇA
Dependentes químicos menores de idade são levados para internação compulsória em operação da Secretaria de Assistência Social do Rio. As operações começaram em maio e já recolheram mais de 1.300 pessoas

A medida de internação à força do Rio de Janeiro é pioneira, tem provocado polêmica, mas conquistado cada vez mais adeptos entre os gestores públicos. No Congresso, tramita um projeto de lei que propõe extinguir a necessidade de ação judicial para internar alguém à força. No governo federal, há autoridades simpáticas à ideia. Em São Paulo, onde há a maior cracolândia do país, depois de dois anos de uma política de convencimento de dependentes para que aceitassem voluntariamente ser tratados, a experiência carioca poderá ser repetida em breve. A Procuradoria-Geral da cidade deu um parecer favorável à internação compulsória de usuários de crack. A decisão agora cabe ao prefeito Gilberto Kassab, que já admitiu publicamente ver a internação forçada como uma resposta para o histórico problema do município. Estima-se que, pela cracolândia paulistana, perambulem quase 2 mil pessoas diariamente. A internação na marra funciona? Representa uma solução para as famílias que sofrem o drama de ter dependentes em crack?

A despeito das críticas daqueles que veem na proposta apenas uma tentativa de limpar as ruas, diversos motivos empurram os governantes à medida extrema da internação compulsória. A droga surgiu no Brasil no fim da década de 1980 e ficou restrita aos grandes centros urbanos e às populações de classe baixa por mais de uma década (leia o quadro abaixo). Nos últimos anos, o crack se espalhou pelo país, atingiu todas as classes sociais e ganhou contornos de epidemia. Nas eleições presidenciais do ano passado, o combate à droga emergiu como um dos assuntos mais discutidos da campanha. Na ocasião, a então candidata petista, Dilma Rousseff, chegou a declarar que o crack era “uma das questões mais desafiantes” de sua futura gestão.

Não existem estatísticas sobre o número de usuários no Brasil. Uma estimativa feita pela Frente Parlamentar Mista de Combate ao Crack, com base nos dados do Censo de 1999 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sugere que eles sejam 1,2 milhão de pessoas. O governo federal deverá divulgar nas próximas semanas os resultados da maior pesquisa já feita sobre o assunto no país. Foram ouvidos 50.890 estudantes de ensino fundamental e médio em todas as capitais e no Distrito Federal. Deles, 0,6% admitiu já ter usado crack ao menos uma vez na vida. Parece pouco se comparado ao número dos que já provaram maconha (5,7%) ou álcool (60,5%). Mas não é. “As pessoas de bom-senso sabem que estamos diante de uma epidemia de crack”, diz o médico Drauzio Varella, favorável à internação compulsória.

A comparação entre o número de usuários de crack e os de outras drogas, como maconha e álcool, também não revela a magnitude dos prejuízos físicos e sociais que cada uma dessas drogas produz. “Existem dois tipos de usuário: aqueles que usam compulsivamente a droga até acabar e que, tão logo acabe, partem em busca de mais e aqueles que fazem um uso controlado da substância”, afirma o psiquiatra Elisaldo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “A grande maioria dos usuários de crack pertence ao primeiro grupo.” A necessidade de repetir o êxtase obtido no consumo da pedra pode levar o viciado a abandonar a própria casa e a família e a cometer crimes. Maltrapilhos, vagando pelas ruas em meio a lixo e entulho e sob o constante delírio provocado pelas baforadas de crack, eles parecem estar completamente desprovidos da capacidade de escolher, de exercer as próprias vontades com autonomia. De acordo com os defensores da medida, esse estado degradado dos dependentes justifica a internação compulsória.

A vida de A., de 14 anos, é uma sucessão de evidências favoráveis a esse argumento. Viciada em crack desde os 9, ela chegou a se prostituir para comprar a pedra. Nas cracolândias, contraiu HIV, sífilis e tuberculose. Internada compulsoriamente no Rio há dois meses, tenta se recuperar do vício. Simpática, revela, ao fim de cada frase triste, um sorriso banguela. O dente perdido é uma das consequências de sua compulsão química. Desesperada para fumar e sem dinheiro, aos 11 anos A. surrupiou uma pedra de R$ 5 do estoque de um traficante. Descoberta, levou uma surra que lhe extirpou parte do sorriso. Nas regras de conduta rígidas do crime, é razoável considerar que A. teve sorte de não ter sido morta. Os criminosos parecem ter entendido antes do Estado o potencial devastador do crack. Nas cadeias brasileiras sob mando do crime organizado, a lei tácita dos presos é taxativa: é proibido o consumo de crack atrás das grades. “Nos presídios do país, as facções chegaram à conclusão de que era melhor abolir o crack porque o uso acaba por interferir na hierarquia da cadeia e atrapalha o negócio. Se você fuma crack dentro da cadeia, toma uma surra que nunca mais esquece. E, se você trafica, eles te matam”, diz Drauzio Varella.

André Valentim
RESISTÊNCIA
Uma usuária de crack na Favela do Jacarezinho, no Rio. Aparentando estar grávida, ela se recusava a ser internada

Fora dos presídios, nem o Estado nem as famílias conseguiram exercer um controle sobre o uso do crack tão estrito como o imposto pelas facções criminosas. Nenhuma das tentativas feitas pela camareira Terezinha dos Santos, de 38 anos, do Rio de Janeiro, de amarrar os pés e as mãos da filha para mantê-la em casa funcionou. Viciada em crack, era comum que J. passasse temporadas fora de casa. “Ela saía de casa arrumada, com uma roupa bonita. Voltava dias depois, com outra roupa, fedendo, machucada, faminta e agressiva”, diz Terezinha. “A gente sabia que ela saía, mas não sabia se voltava.” Da última vez que fugiu para a cracolândia, J. não voltou. Foi encontrada pela equipe de assistência social do Rio dez dias depois de ter saído de casa. Ela resistiu à abordagem e não admitia estar grávida de oito meses. Como já tinha 22 anos, não poderia ficar internada compulsoriamente sem uma decisão judicial. Depois de capturada pela assistência social, ela teria direito a sair do abrigo.

A prefeitura do Rio e a mãe da garota recorreram ao Judiciário. “Foi uma luta para conseguir uma decisão judicial que obrigasse ela a ficar internada”, diz Terezinha. J. passou o fim da gravidez num quarto de hospital vigiado por policiais, que a impediram de fugir. Depois de nascer, o bebê teve de passar por uma desintoxicação durante dez dias. “Ela não tinha noção do que estava fazendo, não tinha como decidir nada, e isso era claro. Mas eu não conseguia interná-la à força porque o processo judicial é complicado”, diz a mãe. A depender do Legislativo, é possível que outras mães sejam poupadas do périplo de Terezinha. O deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS) propôs, em projeto de lei, extinguir a necessidade de uma decisão judicial para internar um dependente à força. A palavra de um médico bastaria como aval para que a família ou o Estado ponham, na marra, crianças ou adultos em hospitais. A proposta já foi aprovada na Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados e deverá ser encaminhada ao plenário nos próximos meses. Se aprovada, permitiria uma onda de internações compulsórias.

A aprovação da lei pode gerar uma grande discussão judicial, já que alguns juristas interpretam-na como inconstitucional, por ferir o direito de ir e vir garantido aos cidadãos pela Carta Magna de 1988. A Ordem dos Advogados do Brasil manifestou-se publicamente contra a medida da prefeitura do Rio. “As pessoas maiores de idade, salvo se interditadas, podem praticar todos os atos da vida civil: podem votar, podem casar, ir aonde quiserem. Em hipótese alguma, podem ser compulsoriamente internadas. Vou até mais longe: se o Kassab e os outros governantes insistirem nisso, correrão o risco até de parar num tribunal penal internacional por praticar crime contra a humanidade”, afirma o jurista Wálter Maierovitch. Os defensores da medida lembram que a mesma Constituição garante o direito à vida aos cidadãos. “Vamos botar na balança: o que é mais importante? O direito à vida e à saúde ou o direito de ir e vir?”, diz o promotor Marcelo Luiz Barone, de São Paulo. Barone faz parte do grupo do Ministério Público paulista que se dedica a estudar formas de pôr em prática uma interdição judicial coletiva aos crackeiros da cidade. “O bem maior garantido pela Constituição é a vida do ser humano”, afirma.

O tema é especialmente sensível porque, há mais de 20 anos, o movimento mundial antimanicomial luta para pôr fim aos hospitais psiquiátricos, em que se encarceravam por décadas doentes mentais e dependentes químicos. “Nenhum país democrático do mundo tem instituições fechadas”, diz a vice-prefeita de São Paulo, Alda Marco Antonio (PMDB), que acumula a função de secretária de Assistência Social. A despeito de ser integrante da gestão Kassab, Alda se opõe à internação compulsória. A Europa descreveu o caminho oposto àquele ao qual o Brasil parece rumar na tentativa de combater a dependência química. Diante dos maus resultados dos parques de consumo, em países como Suíça e Holanda, os governos locais optaram por criar as “narcossalas”, espaço em que o uso da droga é liberado, mas controlado, e em que se aplicam técnicas de redução de danos. De acordo com o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), nenhum país do continente adota medidas de internação compulsória.

Nos Estados Unidos, o Estado propôs outra maneira de levar viciados ao tratamento. Criou cerca de 1.400 tribunais exclusivos para os usuários de drogas, em todo o país. Dependentes químicos apanhados com drogas, em vez de prisão, são obrigados a ficar internados para combater o vício. No Brasil, desde 2006, os usuários de droga não podem ser punidos com prisão. Os críticos da adoção da internação compulsória como política pública veem na medida uma reversão da tendência mais humanizada no tratamento aos viciados em drogas. Segundo essa visão, seria aberto um perigoso precedente para a reedição, no mundo real, de enredos como o do filme Bicho de sete cabeças, em que um usuário de maconha é internado à força num manicômio. O assunto divide até mesmo o governo federal. Segundo ÉPOCA apurou, o Ministério da Justiça aceita discutir a ideia da internação forçada. No Ministério da Saúde, há resistência.

André Valentim e Davilym Dourado/ÉPOCA
RECUPERAÇÃO
À esquerda, Terezinha dos Santos, mãe de uma jovem de 22 anos recolhida aos oito meses de gravidez de uma cracolândia do Rio. À direita, João Victor Melhado, de 29 anos. Dependente de crack por seis anos, ele foi internado nove vezes. Só se recuperou depois de se internar por vontade própria

Há ainda a discussão sobre a eficácia da internação compulsória. Os psiquiatras dizem que ela pode funcionar ou não – e que o sucesso da internação, voluntária ou involuntária, depende da reinserção social e do acompanhamento cuidadoso do paciente depois da alta. “Nos casos mais graves, a internação é a alternativa mais segura. O ideal seria que ninguém precisasse disso, mas a dependência química é uma doença que faz com que a pessoa perca o controle”, afirma o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, favorável à medida.

Baseado em sua própria experiência, João Victor Melhado, de 29 anos, coordenador de uma casa de tratamento de dependentes químicos, é taxativo ao discordar e dizer que internar à força não funciona. Durante seis anos, ele foi viciado em crack. Chegou a gastar R$ 1.200 por mês em drogas. O desespero da família de classe média, do interior paulista, levou-o a nove internações. Numa delas, foi carregado na marra. “Acordei com três caras em volta de mim. Eles me algemaram e me enfiaram num camburão. Eu nem sabia se estava sendo levado para a prisão. Só descobri depois de chegar lá que estava numa clínica particular de recuperação”, diz Melhado. Em dois meses, ele conseguiu fugir do lugar e voltou ao crack. Sua recuperação só aconteceu quando, em 2009, por vontade própria, ele se internou. Passou um ano em tratamento. Está há dois anos sem usar drogas e agora trabalha para recuperar outros jovens. “Não adianta chamar ambulância, forçar, enjaular. Eu já passei por isso e sei que não recupera ninguém”, afirma Melhado.

A garota A., do Rio, afirma que é somente graças à internação forçada que ela está viva. Faltava à menina discernimento e condições psíquicas de pedir ajuda. “Cheguei aqui pesando 23 quilos. Agora estou com 50 e poucos. Aqui é tudo bom, tem comida na hora certa, os educadores são bons”, diz. Ainda assim, o comportamento de A. não dissimula a dificuldade da jornada. Entre os sorrisos e as brincadeiras, ela implora a uma das educadoras um cigarro para saciar sua fissura.

Além da discussão legal, médica e filosófica, há problemas práticos. O Estado brasileiro dispõe de escassas vagas para internação – compulsória ou não – e tratamento de dependentes químicos. Em São Paulo, há 317 leitos para esse fim, entre parcerias com instituições privadas e o serviço da própria prefeitura, criado no ano passado nas instalações de um antigo motel. O problema se repete sistematicamente nos grandes e pequenos municípios do Brasil. E manter essa população internada sai caro. No Rio de Janeiro, cada criança abrigada compulsoriamente no serviço da prefeitura custa cerca de R$ 3 mil por mês. Em São Paulo, a manutenção de hospital com 80 leitos municipais exige R$ 1,3 milhão mensais.

Andre Penner/AP
SEM AUTONOMIA
Aglomeração de usuários de crack no bairro da Luz, em São Paulo, por onde circulam cerca de 2 mil pessoas por dia. A prefeitura estuda adotar a internação compulsória porque entende que os dependentes não são mais responsáveis por si mesmos

Uma alternativa tem sido encaminhar dependentes a comunidades terapêuticas, a maioria ligada a instituições religiosas. Uma das maiores em atividade no Brasil, a católica Fazenda da Esperança abriga quase 2 mil pessoas em 55 unidades espalhadas pelo país. O tratamento, que dura um ano, consiste em manter uma rotina de trabalho e convivência comunitária e exercitar a espiritualidade. Não há remédios ou acompanhamento médico. Só são aceitos dependentes que queiram se tratar. Desde janeiro, a Fazenda da Esperança firmou uma parceria com a prefeitura de São Paulo e tem tentado convencer os usuários da cracolândia paulistana a se internar. Até agora, apenas 12 aceitaram a ideia. “O prefeito Kassab veio aqui, demonstrou sua preocupação de não saber o que fazer, eu disse a ele que podia oferecer o nosso jeito”, afirma o idealizador do projeto, o frei alemão Hans Stapel. “Mas o alertei de que não aceito mudanças e não vou internar ninguém à força.”

Segundo Stapel, cerca de 80% dos pacientes tratados por seu método se mantêm distantes da droga, um porcentual de sucesso superior à taxa de recuperação média das clínicas, que recuperam entre 20% e 30% dos dependentes. O papel da religião na recuperação dos viciados provoca controvérsia. “A dependência química é uma doença complexa e requer um tratamento complexo. Não vai ser com oração que você vai tratar adolescente dependente de crack”, diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira. Mas trabalhos realizados por psiquiatras têm demonstrado que a religião pode funcionar como um meio de reinserção social e afastar o risco da dependência. Em 2004, uma pesquisa feita pela Unifesp com jovens moradores de favelas de São Paulo em que havia prevalência de tráfico de drogas mostrou que aqueles que não se tornavam dependentes químicos atribuíam sua distância dos narcóticos ao respeito à mãe e, em segundo lugar, à religiosidade.

Não há respostas fáceis para o tratamento dos dependentes químicos, especialmente no caso de uma droga tão destrutiva como o crack. “A internação compulsória é um recurso extremo, e não podemos ser ingênuos e dizer que o cara fica internado três meses e vira um cidadão acima de qualquer suspeita. Muitos vão retornar ao crack. Mas, pelo menos, eles têm uma chance”, diz Drauzio Varella. Longe de ser uma solução ideal, a internação compulsória talvez seja a única resposta para os casos mórbidos criados pelo vício em crack.


Marcelo Rudini/Ed. Globo, Bruno Miani/Futurapress e divulgação (2)
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terça-feira, 9 de agosto de 2011

The power of fat Boy

Salve ,salve galera, pra vc's ficarem de cara, segue a baixo o video do gordinho mais pegador da internet. Um defensor daqueles que possuem uma forma física alternativa, uma máquina do chaveco, o icono, a lenda...


segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O Marxismo na música brasileira.

O pensamento de Karl Marx influenciou e ainda influência milhões de pessoas ao redor do mundo. Algumas delas trazem aspectos de pensamento de Marx em seus trabalhos, são filósofos, poetas, artistas, diretores de cinema, escritores e músicos. Na música brasileira o marxismo esteve presente fortemente durante os anos de 1960 no auge do tropicalismo. No entanto é possível perceber a influência de Marx em músicas mais recentes.

Veja os exemplos a seguir:





Atividade:

Analisar a letra das músicas e identificar de que forma que o pensamento de Marx está presente nelas, seja na questão da luta de classes, ou com a ideia de infra-estrutura e superestrutura. Bom trabalho a todos!